segunda-feira, 29 de dezembro de 2008


Os dragões chineses, nos sonhos dela,
eram mais perigosos do que um avião caindo.
Assim, quando o avião caiu,
ela só se lembrava dos dragões.

Antes de se desmanchar no chão,
olhou para trás vezes sem conta, apavorada,
a ver se algum bicho em brados de fogo a perseguia.

As coisas aladas ensinam o chão,
explicam-lhe quanto há entre a terra e o céu.
Eu vejo os anjos e os anjos são, das coisas aladas,
os sonhos mais completos.
Luzem nas nossas cabeças como homens enfim pássaros.
Seres leves tão atarefados com mais nada.
Que comem flores de lótus e não se vêem,
o sol não lhes sabe chegar.
Reconhecem-se pela cumplicidade.
Consomem os lugares como se esgotassem
o espaço à força do pensamento.

Terás que perdoar.
Se eu ao relento for uma mulher a ser inventada,

quero aparecer num amor urgente
Continuarei dentro de ti.
Quis trazer as coisas mais belas
e em tudo o que fiz pus o cuidado meticuloso

de quem ama.
Alimentamo-nos depois, os dois,
de um misto de saudade e inusitada capacidade de mudar.

Faz-me sempre assim, empoleirada nos telhados.
Imagens, sim, imagens que talvez te surpreendam.
Mas não te assustes, tantas vezes to peço, não te assustes.

Há uma pornografia erudita feita para gente como nós.
Uma coisa assim entre o querer fazer,
a aflição espiritual e o amor eterno.

Espelhos incandescentes sabem que a minha face
está em fuga enquanto espera.
Quando vieres, estarei e não estarei aqui.
Na verdade, estou perplexo,
porque alguém tão belo
me procura dizendo que me quer.
Ainda assim, peço-lhe que não olhe em demasia,
não suporto a ideia de a perder.

Vou amar-te eternamente se a perplexidade
puder ser uma forma de amor.
Procura-me.
Se não te ouvir, toca-me e espera quanto for preciso.

Podíamos partir dessa primeira dor para a felicidade.
Dentro do insondável, arriscando tudo como quem
se sensibiliza com a ínfima hipótese de tirar a roupa
num outro mundo, quem sabe ainda melhor.

Preparando sem medo as emoções
para algo profundamente novo.
Recomeçando a convicção de que o amor
foge deste mundo e está a mil quilómetros
para além de cada corpo como só faz sentido ser
guardado em corações que não dependam da carne.

Distraio-me assim, acreditando que
ainda vou encontrar o amor incondicional e eterno.
Prefiro, sem garantia nenhuma, voltar a ficcionar
o futuro a partir da esperança mais difícil e animar-me
para todas as coisas já um pouco feliz e apaixonado.

Tenho uma mulher invisível ao meu lado
e só pode ser uma cópia do que és tu.
E posso entrar no mar em busca de todas as coisas impossíveis,
porque sei que não as vou encontrar.
À noite, sonhamos os dois com o mesmo.

Vou buscar o meu coração.
Guardei-o aqui algures e, por ti, tenho a certeza,
vale a pena voltar a encontrá-lo e

correr todos os riscos de novo.
Talvez cá venhas hoje, talvez te possa falar dela.
Volta a fechar a porta e talvez durmas,
está um agradável silêncio no prédio,
tenho a certeza de que reparaste nisso.



Folclore Íntimo (adapt.)
valter hugo mãe

foto: francesca woodman

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