sexta-feira, 7 de agosto de 2009

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'andamos a aguentar, a aguentar, um dia largamos tudo e vamos correr o mundo. cabelo ao vento, sentir a brisa à beira-mar, comer nos cafés de rua, mergulhar. rir, rir, rir, dizer disparates, fazer asneiras, ser criança, um dia fazemos isso. aguentamos, aguenta, aguentamos, um dia atrás do outro, fartos do emprego, dos outros, que são sempre os culpados, os outros, os outros, os outros, culpa daquele e daquela, que vão para a cama com este e aquela, gente que aguenta, que se arrasta onde antes foi feliz, onde chegou porque queria ou por acaso, e foi ficando, ficando, ficando, um dia acorda a arrastar os pés, de um lado para o outro, zombies, cadáveres, de casa para o trabalho, do trabalho para casa. gente a quem apetece chorar, chegar a casa e explodir, a perguntar onde foi que erraram, sem poder voltar atrás, gente a trabalhar numa prisão, das nove às cinco, com vontade de gritar que se fodam vocês, mas não pode, não deve, são as contas para pagar, contas, contas, contas, uma vida inteira a pagar contas, e por isso aguenta, aguenta. diz um dia vou-me embora, um dia sai-me a lotaria, um dia vou ter o meu negócio, um dia isto acaba tudo, um dia isto melhora, um dia vamos ser felizes. aguentam a relação, aguenta, aguenta, é mais prático, dá trabalho separar, dividir, magoá-la, magoá-lo, gente que muda, que fica diferente, mas que ninguém repara, em revolta com quem não muda, com quem já não vai ao nosso lado, ficou para trás, ficou para a frente, já não damos as mãos, mas aguentamos, aguentamos, aguentamos, um dia isto passa, é uma fase, são assim as relações, é o que nos dizem, temos medo do tempo, da guilhotina da maternidade, de ficar velhos e velhas e não termos filhos novos, medo de não encontrar mais ninguém, medo terrível da solidão, de não voltar a ser feliz, de enfrentar o incerto de punhos fechados, com medo, quanto mais velho mais medo de deitar tudo para trás, medo de dizer acabou, paciência, não tenho ressentimentos, não tenhas tu, sê feliz porque eu também quero ser, medo disto e daquilo, de tudo e de nada, e por isso aguenta-se, aguenta-se, aguenta-se. amordaçados, em revolta com o mundo, revolta surda-muda, cá dentro, em guerra com tudo e todos, em guerra com este e aquele, comigo e contigo, não aguentamos a cara ao espelho, a sofrer horrores, impotente, sem forças, conformada, roubados de todos os sonhos loucos, de já não gritar pela vida, carcomidos pela angústia, pelo medo, pelo desgosto de já não ser feliz. gosto disto mas queria mais qualquer coisa, não sei bem o que é, mas que quero. sangue coagulado, vermelho escuro e parado, frágeis, tão frágeis, à procura de força, força, força, sabe-se lá onde esta gente frágil vai buscar tanta força, à procura de quem perceba que andamos a mentir quando respondemos que está tudo bem. deitamo-nos todas as noites a pensar que amanhã vamos ser felizes, amanhã, vou-me embora, vou acabar, começar, chegar, ficar, decidir, amanhã vou fazer alguma coisa, mas não. cordas atadas, fica para amanhã, amanhã é que é, aguentamos mais um dia, um dia não é nada, aguenta, aguenta, aguenta, um dia isto acaba tudo, um dia isto melhora, um dia vamos ser felizes. '
foda-se. que seja agora. quero ter-te até ao fim.

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